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Como a França Está Se Vingando de Moscou pela Intromissão Russa em Suas ex-Colônias na África

  • Desafiando a hegemonia tradicional francesa, a Rússia se aproximou de ex-colônias africanas despertando o desejo por mais liberdade e autonomia em relação à França na região;
  • Com a expansão da influência russa na ‘África Francesa’ por meio de guerra híbrida, Paris recebeu vários pedidos de retirada das suas tropas;
  • Em resposta, a França adotou uma abordagem de retaliação, buscando expandir sua influência em territórios historicamente alinhados com Moscou. 

Numa trama repleta de intrigas políticas e interesses estratégicos, a França parece buscar uma vendetta, ou seja, uma retaliação contra a intromissão russa em sua esfera de influência africana. O aumento da influência de Moscou na região, através do Grupo Wagner (e agora Africa Corps), causou um declínio da influência francesa, evidenciado pela retirada de suas tropas de países como Níger, Burkina Faso e Mali.

No entanto, a França não permanece passiva diante desse avanço, retaliando com uma série de iniciativas destinadas a minar os interesses russos em territórios historicamente alinhados com Moscou na Eurásia, como Armênia, Cazaquistão, Ucrânia e Uzbequistão. Essa disputa não é apenas uma batalha por influência, mas uma luta pelo prestígio e poder global, cujas consequências podem remodelar o equilíbrio de poder além da Europa.

Françafrique“: entendendo a teia de relações entre França e países africanos 

Houve um período em que a França, após a Segunda Guerra Mundial, procurou manter sua influência sobre os países africanos de forma menos evidente do que durante o colonialismo, quando Paris dominava diretamente esses países. 

O termo “Françafrique” surgiu da expressão “France-Afrique“, utilizada pelo primeiro presidente da Costa do Marfim, Félix Houphouët-Boigny, em 1955, para descrever os laços estreitos entre seu país e a França.

Mais tarde, em 1998, François-Xavier Verschave renomeou pejorativamente esse conceito como “Françafrique” para criticar as supostas atividades corruptas e clandestinas de diversas redes políticas, econômicas e militares franco-africanas, também conhecidas como o neocolonialismo francês.

Essa estratégia visava garantir o acesso aos recursos naturais do continente africano, especialmente o petróleo e urânio, mantendo líderes favoráveis à França no poder e protegendo os interesses franceses na região. Jacques Foccart foi uma figura central nesse esquema, agindo como um coordenador dos interesses franceses na África.

Alguns exemplos dos interesses franceses nos países africanos incluem:

  • Costa do Marfim: Era considerada a joia da coroa da “Françafrique” devido à sua estabilidade política e economia relativamente próspera. A França viu na Costa do Marfim um aliado crucial para garantir acesso aos recursos naturais, especialmente o cacau e o petróleo.
  • Senegal: Foi um dos primeiros países africanos a obter independência da França em 1960. No entanto, a relação próxima entre Senegal e a França continuou a ser importante, especialmente devido à posição geopolítica estratégica do Senegal na África Ocidental – sua posição litorânea permite acesso privilegiado ao Oceano Atlântico, facilitando o comércio marítimo e o controle das rotas de navegação – e à cooperação militar entre os dois países.
  • Camarões: Também desempenhou um papel significativo na estratégia “Françafrique” devido à sua localização estratégica na África Central – fazendo fronteira com diversos países da região – e à sua produção de recursos como petróleo e gás natural. 
  • Gabão: Era um dos países africanos mais próximos da França, com uma relação que remonta ao período colonial. A França tinha interesses econômicos significativos no Gabão, especialmente na exploração de petróleo, e mantinha uma forte presença militar na região para proteger esses interesses.
  • Mali: Após a independência do Mali em 1960, a França continuou a desempenhar um papel importante na política e na economia do país. A presença militar francesa no Mali aumentou devido a preocupações com o terrorismo na região, mas também refletiu os interesses históricos e econômicos da França no país.
  • Níger: Foi uma das colônias da África Ocidental Francesa e conquistou a independência em 1960. O país desempenha um papel significativo como fornecedor de urânio para a França, sendo um dos maiores exportadores do metal no mundo, que é essencial para ser usado em usinas nucleares.

No entanto, ao longo do tempo, surgiram críticas à “Françafrique”, com muitos africanos percebendo que estavam sendo explorados e manipulados. 

Movimentos de independência e líderes nacionalistas desafiaram a influência francesa, embora a teia de relações estabelecida fosse difícil de desfazer.

O fim de uma era: a queda da França no Oeste da África

O ano de 2023 marcou um grande declínio na influência da França no continente africano, especialmente em suas ex-colônias. 

A retirada das tropas francesas de alguns países, combinada com a suspensão das relações diplomáticas e medidas restritivas adicionais, sinalizou uma mudança nas dinâmicas de poder da região.. 

A perda de poder da França da África pode ser exemplificada nesses casos:

  • Níger:
    • Golpe militar no Níger em julho desencadeou tensões entre a França e a junta militar.
    • França inicialmente resistiu às demandas da junta para remover suas tropas, mas eventualmente concordou com a retirada gradual de 1.500 soldados até o final de 2023.
    • A retirada das tropas francesas foi acompanhada pelo fim abrupto da presença diplomática da França, com a retirada do embaixador, refletindo mudanças na dinâmica de poder na região do Sahel.
  • Burkina Faso:
    • Em janeiro de 2023, o governo liderado por militares no Burkina Faso intensifica sua postura ao exigir a saída das tropas francesas do país, enquanto paralelamente avança com mudanças significativas, como a revisão constitucional que visa elevar as línguas nacionais ao status de oficiais, relegando o francês a uma posição de língua de trabalho.
    • As relações já abaladas entre Burkina Faso e França atingem um ponto crítico após o golpe que estabeleceu um novo governo. Este evento precipita a retirada discreta das tropas francesas do país em fevereiro de 2023, em meio a um contexto de crescente distanciamento entre os dois países.
    • A retirada das tropas francesas, ocorrida logo após a mudança de poder e a escalada das tensões, representa um momento crucial na história recente das relações bilaterais entre o Burkina Faso e a França, especialmente em meio à implementação de mudanças constitucionais que refletem uma nova dinâmica linguística e política no país africano.
  • Mali:
    • Desde o golpe militar ocorrido em Mali em 2020, as relações entre a França e o governo militar liderado pelo coronel Assimi Goita têm sido marcadas por tensões crescentes. O golpe resultou na destituição do presidente eleito Ibrahim Boubacar Keita e na ascensão do governo militar.
    • Em março de 2023, as tensões atingiram um novo patamar quando o governo de Mali decidiu suspender as operações da mídia francesa no país. Essa decisão foi tomada em resposta a alegações do governo de Mali de que a mídia francesa estava divulgando relatos falsos sobre a situação humanitária e política em Mali. Esta medida exacerbou ainda mais as relações já tensas entre os dois países e também com as Nações Unidas que retirou sua missão do país à pedido do ministro das Relações Exteriores do Mali.
    • Além disso, a presença militar francesa em Mali tem sido objeto de críticas por parte de alguns setores da sociedade malinesa, que a veem como uma interferência externa em assuntos internos. Essa controvérsia em torno da presença militar francesa tem contribuído para uma escalada nas hostilidades e tensões entre a França e Mali.

Esses acontecimentos mostram que os países africanos estão cada vez mais se opondo às maneiras como a França costumava controlá-los, buscando mais liberdade e independência. Isso desafia o poder que a França sempre teve na região. 

Mas por que todo esse movimento anti-Francês na África está acontecendo agora?

O Grupo Wagner: estratégias russas e sua influência nas ex-colônias africanas

Desde meados da década de 2010, o Grupo Wagner, uma organização paramilitar (também considerados de mercenários) com ligações estreitas com o governo russo, tem gradualmente aumentado sua presença na África, enquanto a Rússia emprega táticas de guerra híbrida para expandir sua influência na região.

Essa estratégia envolve uma combinação de ações militares, como o envio de mercenários e a realização de operações secretas, com atividades não militares, como propaganda, desinformação e influência política.

Por exemplo, o Grupo Wagner é uma organização paramilitar russa que atua como uma espécie de “exército privado” em várias regiões da África, apoiando regimes locais e promovendo os interesses russos na região.

Ao mesmo tempo, a mídia RT (um braço mediático de propaganda do governo da Rússia), apesar de banida da União Europeia, continua a operar em países francófonos da África, disseminando uma narrativa favorável à Rússia e desacreditando potências ocidentais, como a França.

Para facilitar a compreensão dos eventos, é essencial examinar os acontecimentos em uma sequência cronológica. Assim, pode-se observar uma linha do tempo que ilustra a expansão do Grupo no continente africano.

  • 2014-2015: Durante o conflito na Ucrânia, o Grupo Wagner ganha destaque ao ser implantado em apoio às forças separatistas pró-Rússia. Essa experiência serve como modelo para suas futuras operações em outras regiões, incluindo a África.
  • 2017: O Grupo Wagner é detectado na Síria, onde desempenha um papel fundamental em operações militares em favor do governo de Bashar al-Assad. Sua atuação demonstra a capacidade da Rússia de projetar poder além de suas fronteiras por meio de grupos paramilitares.
  • 2018: O Grupo Wagner estende sua presença para a República Centro-Africana, fornecendo segurança para o governo local em troca de concessões de recursos naturais. Ao mesmo tempo, a Rússia intensifica o uso da mídia estatal, nesse caso a RT em francês conhecida como RT en Français ou RT France, para promover sua narrativa e influenciar a opinião pública em países africanos, além de usar a violência para controlar e extorquir as minas de diamante do país.
  • 2019: Relatos indicam a presença do Grupo Wagner em países como Sudão, Líbia e Moçambique, onde suas atividades estão alinhadas com os interesses geopolíticos russos na região. Paralelamente, a RT intensifica sua cobertura na África, visando uma audiência dos africanos falantes de francês.
  • 2020: O Grupo Wagner expande suas operações para ex-colônias africanas francesas, como Mali e Burkina Faso, desafiando a influência tradicional da França na região. Ao mesmo tempo, a RT intensifica sua presença na África, apesar de ser banida da União Europeia.
  • 2021: A França busca reformular sua estratégia na África para conter a crescente influência russa, mas enfrenta desafios diante das táticas de guerra híbrida empregadas pela Rússia. Enquanto isso, o Grupo Wagner e a RT continuam a expandir sua presença e influência na região.
  • 2022: O Grupo Wagner consolida sua presença na região e influencia a opinião pública negativamente sobre a presença da França na região. Ao mesmo tempo, a RT continua a promover a narrativa russa e desafiar a influência ocidental na África. Os mercenários associados ao Grupo Wagner também enfrentam acusações de crimes de guerra, abusos e interferência em conflitos na República Centro-African e em diversas regiões da África, incluindo o Mali, Líbia, Chade, Sudão e Moçambique. Além disso, há relatos de atividades semelhantes na Síria, Venezuela e Ucrânia.
  • 2023: A influência do Grupo Wagner e da RT na África é grande, o que influencia fortemente a retirada das tropas francesas do Níger e Burkina Faso , enquanto a França intensifica seus esforços diplomáticos para conter a expansão russa. No entanto, as táticas de guerra híbrida empregadas pela Rússia apresentam grandes desafios para os esforços franceses.

Em 2024 a situação na África parece ainda estar em uma transição de alianças, com o equilíbrio de poder na região em jogo.

A França continua a enfrentar dificuldades para conter a influência russa, enquanto o Grupo Wagner e a RT continuam a expandir suas operações na região, utilizando uma combinação de força militar e guerra de informação para alcançar seus objetivos geopolíticos.

Desvendando a vingança francesa: retaliação contra a intervenção russa na África

Tendo em vista a aproximação Russa na esfera de influência francesa, Paris está adotando uma abordagem similar à russa para se aproximar dos países do Cáucaso e da Ásia Central, que estão na esfera de influência de Moscou como forma de provocação.

Esse plano inclui iniciativas que têm o objetivo de fortalecer os laços com países da região e, assim, expandir sua influência, tomando o lugar da Rússia. 

Os primeiros países a serem abordados pela estratégia francesa são:

  • Armênia:

– Cooperação militar: A França está intensificando sua cooperação militar com a Armênia, fornecendo equipamentos militares avançados, como óculos de visão noturna, rifles de assalto e possivelmente mísseis Mistral de curto alcance. Esses acordos destacam o compromisso da França em apoiar a defesa da Armênia, especialmente em meio às tensões com o Azerbaijão, mesmo após o fim da guerra de Nagorno-Karabakh, vencida por seu rival.

– Presença diplomática: A visita do ministro da Defesa francês a Yerevan, capital da Armênia, demonstra o interesse da França em reforçar os laços bilaterais e oferece uma plataforma para a França influenciar os assuntos regionais.

– Alianças estratégicas: A França busca alianças estratégicas com a Armênia, um país que foi “abandonado” pela Rússia durante a guerra com o Azerbaijão. Ao fortalecer os laços com a Armênia, a França está efetivamente desafiando a influência russa na região, mas também a influência do Azerbaijão que está preocupado com o aumento da presença francesa na região, temendo que isso possa levar a uma nova escalada de tensões.

  • Cazaquistão:

– Diplomacia econômica e cooperação energética: A França está buscando fortalecer seus laços econômicos com o Cazaquistão, um país-chave na Ásia Central, por meio de acordos comerciais e investimentos. O Cazaquistão é uma potência econômica na região e Paris está interessada em explorar oportunidades de cooperação em setores como tecnologia, agricultura e energia, desenvolvendo seus recursos energéticos, como em projetos de energia renovável e sustentável.

– Influência geopolítica: O Cazaquistão é um importante aliado da Rússia, e a crescente presença francesa pode minar essa aliança.

  • Uzbequistão:

– Cooperação econômica: A França está buscando oportunidades de cooperação econômica com o Uzbequistão, outro país-chave na Ásia Central. Isso inclui investimentos em setores como infraestrutura, transporte, manufatura e turismo. O Uzbequistão possui um mercado em crescimento e é visto como um destino atraente para investimentos estrangeiros.

– Parcerias estratégicas: O Uzbequistão é um país estrategicamente importante na Ásia Central, e a França está interessada em fortalecer seus laços com o país para ampliar sua presença geopolítica na região. Isso pode incluir cooperação em questões de segurança regional, como combate ao terrorismo, narcotráfico e estabilidade política.

– Desafio à influência russa: O Uzbequistão historicamente manteve laços estreitos com a Rússia, mas está buscando diversificar suas relações internacionais. A presença crescente da França pode complicar a posição da Rússia na região.

  • Ucrânia:

– Apoio militar: A França está buscando oferecer um maior apoio à Ucrânia em sua guerra contra a Rússia. Isso inclui fornecimento de equipamentos militares, treinamento de tropas e assistência técnica para fortalecer as capacidades de defesa ucranianas. 

– Cooperação política: Além do apoio militar, a França está fortalecendo seus laços políticos com a Ucrânia, buscando formas de aumentar a pressão diplomática sobre a Rússia e promover uma solução pacífica para o conflito. Isso inclui participação ativa em fóruns internacionais e organizações multilaterais que discutem a situação na Ucrânia, além de buscar parcerias bilaterais para promover a estabilidade e a segurança na região.

– Desafio à influência russa: A intensificação do apoio francês à Ucrânia também pode ser vista como um desafio direto à influência russa na região. A Rússia vê a Ucrânia como parte de sua esfera de influência (ou até como parte da própria Rússia) e tem buscado manter o controle sobre o país através de uma invasão militar massiva (e tentativa de ocupação e anexação) e constante apoio militar a grupos separatistas. Portanto, o aumento do apoio francês à Ucrânia pode minar os esforços russos para manter sua posição dominante na região.

– Solidariedade europeia: A França está agindo em consonância com outros países europeus que também têm demonstrado apoio à Ucrânia, tanto em termos políticos quanto militares. Isso faz parte de uma estratégia mais ampla para promover a segurança e a estabilidade na Europa Oriental e desafiar a expansão russa na região.

É certo que a Rússia pode ver a presença francesa na região como uma ameaça aos seus interesses geopolíticos e de segurança.

Isso pode levar a uma reação por parte da Rússia, incluindo medidas para reforçar sua própria influência na região e desencorajar a expansão da influência francesa, mesmo que esteja fazendo o mesmo no Oeste da África.

Porque a disputa entre a França e a Rússia por influência regional é geopoliticamente importante?  

Nesta disputa de poder entre a França e a Rússia pela influência regional, fica claro que ambos os países estão engajados em um jogo complexo de xadrez geopolítico.

No entanto, à medida que essa rivalidade se intensifica, é importante reconhecer não apenas as ramificações imediatas para os países envolvidos, mas também as implicações mais amplas para a ordem mundial.

Ao expandir sua influência nos arredores da Rússia, a França não apenas busca reforçar sua própria posição como potência global, mas também desafia a influência antes estabelecida por Moscow, se posicionando em relação a outras potências, como a China, que também exercem influência na região.

Por outro lado, a Rússia, tenta proteger seus próprios interesses ampliando sua influência na “África francesa”. No entanto, essa presença traz uma série de possíveis malefícios, que incluem o apoio a regimes autocráticos, o fomento de instabilidade por meio de campanhas de desinformação e a utilização do Grupo Wagner (agora Africa Corps), que está envolvido em atividades ilícitas e violações dos direitos humanos em diversos países africanos.

Assim, a disputa entre França e Rússia pela influência regional não se limita aos interesses nacionais, mas possui ramificações que afetam a estabilidade e o equilíbrio do sistema internacional.

A intensificação dessas rivalidades pode resultar em uma escalada das tensões regionais e até mesmo em um aumento das “guerras por procuração” (“proxy wars“), contribuindo para a instabilidade e o conflito em várias partes do mundo. Porém, é um jogo perigoso, principalmente quando jogado por duas potências nucleares.

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