- A Missão de Apoio à Segurança do Haiti (MSS) foi aprovada em outubro de 2023 com o objetivo de trazer a ordem e paz para o país;
- Essa nova missão liderada pelo Quênia é a mais recente de uma série de tentativas de estabilização sociopolítica do Haiti;
- A MSS pode trazer vantagens e desvantagens geopolíticas tanto para o Haiti quanto para o Quênia.
Há muitos anos o Haiti vive em clima de tensões políticas, guerras de gangues e desastres naturais que desencadeiam uma série de problemas socioeconômicos. Desde 1993, uma série de missões foram elaboradas pelo Conselho de Segurança da ONU para trazer paz ao país. Entretanto, as missões trazem uma falsa sensação de estabilidade ao país, já que o seu sucesso é sempre temporário.
A mais recente missão em Porto Príncipe, capital do Haiti, é liderada pelo Quênia e foi aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU no final de 2023.
O que é a Missão de Apoio Multinacional à Segurança “Multinational Security Support Mission (MSS)” do Quênia no Haiti?
Em outubro de 2023, enquanto o Brasil presidiu o Conselho de Segurança da ONU, a criação da Missão de Apoio Multinacional à Segurança do Haiti foi aprovada com 13 votos a favor e duas abstenções. O texto tem o intuito principal de restaurar a lei e a ordem que atingiram estado crítico após o agravamento de conflitos civis e violências de gangues.
A missão é estimada para durar, inicialmente, 12 meses e é liderada pelo Quênia, que se voluntariou para liderar a missão e solicitou contribuições internacionais. Ainda de acordo com o texto votado no conselho:
- Os custos serão cobertos por contribuições voluntárias de Estados-Membros da ONU e organizações regionais, através do fornecimento de pessoal, equipamento, recursos financeiros e logísticos;
- A Missão pode adotar medidas urgentes ao lado da Polícia Nacional Haitiana;
- Os Estados que se comprometeram a ajudar, o Haiti e a liderança da Missão devem atualizar regularmente o Conselho e o Secretário-Geral da ONU;
- A Missão deve prover um mecanismo para prevenir violações de direitos humanos e permitir eleições livres e justas no país.
Em Conselho, a China destacou a importância de haver um governo legítimo no Haiti e consultas aprofundadas com os cidadãos do país acerca do tema. Já os Estados Unidos relembraram a importância da missão para reforçar os direitos humanos no país. Os representantes do Haiti expressaram gratidão pela resolução.
Em maio, uma delegação foi enviada para checar os preparativos dos Estados Unidos para a implementação da missão e William Ruto, presidente do Quênia, se encontrou com Joe Biden na Casa Branca, que prometeu apoio à missão.
Além disso, Bahamas, Bangladesh, Barbados, Benin, Chade e Jamaica se comprometeram a enviar tropas para território haitiano. Já o Canadá, França e Estados Unidos depositaram U$ 18 milhões de dólares no Fundo Fiduciário para a missão.
As primeiras forças de segurança chegaram em Porto Príncipe em junho de 2024….uma cena cotidiana nas últimas décadas…
Histórico de missões de segurança e paz no Haiti
Quando o presidente do Haiti, Jovenel Moïse, foi assassinado em 2021, o primeiro-ministro Ariel Henry assumiu o poder sem a convocação de eleições democráticas. Mesmo que seu mandato terminasse em 2022, ele continuou adiando as eleições.
Desde então, as guerras entre gangues e os crimes violentos apenas cresceram no país. Isso tudo foi agravado após um novo surto de cólera em 2022 e um novo grande terremoto em 2023.
A missão queniana não é a primeira tentativa de pacificação no Haiti, que sofre constantemente com crises políticas, econômicas e desastres naturais, mas a mais recente de uma série de missões que atingem um sucesso temporário.
Alguns exemplos são:
- UNMIH (Missão das Nações Unidas no Haiti) entre 1993 e 1996
A primeira eleição democrática do país após um regime ditatorial e uma série de governos provisórios ocorreu em 1990. Entretanto, o presidente eleito Jean-Bertrand Aristide foi deposto por um golpe militar no ano seguinte. Essa missão teve o objetivo de restaurar a democracia do país.
Em 1996, o então presidente haitiano, René Préval, demonstrou interesse em construir uma força policial eficaz no país, mas as Nações Unidas ainda mantinham preocupações em relação a isso, alegando que a Polícia Nacional Haitiana ainda não conseguiria garantir um ambiente democrático e seguro.
Dessa forma, foi estabelecida uma nova missão de um ano com o principal objetivo de dar assistência e capacitar a polícia haitiana.
Até o ano 2000, outras missões com o caráter de apoio, treinamento e desenvolvimento da Polícia Nacional do Haiti aconteceram.
- MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti) entre 2004 e 2017
A tentativa de estabilidade no país não perdurou, já que em 2001 a oposição se negou a aceitar o resultado da eleição presidencial que elegeu Jean-Bertrand Aristide. Esse clima de impasse e tensão fez com que gangues de rebeldes e a violência crescessem cada vez mais.
Em 2004, o Canadá apoiou a remoção forçada do presidente Aristide do poder. Um governo interino chefiado por Gérard Latortue foi nomeado por um conselho formado por pessoas da França, Canadá e Estados Unidos.
Após a renúncia formal e exílio de Aristide, além do exponencial crescimento do clima de tensão em Porto Príncipe, o Conselho de Segurança das Nações Unidas criou uma força internacional liderada pelo Brasil para assegurar a ordem e a paz no Haiti.
Esse golpe “suave” também levou a criação do Core Group, formada pelas Nações Unidas, Estados Unidos, União Europeia, Canadá, Brasil e a Organização dos Estados Americanos, que molda a política haitiana até os dias atuais. O grupo tinha o objetivo de resolver as crises socioeconômicas e a democracia do Haiti. Entretanto, críticos os acusam de interferência antidemocrática nos assuntos internos do país.
Após dez anos da MINUSTAH, os cidadãos do Haiti estavam insatisfeitos com a constante presença das tropas da ONU em seu território. Assim, em 2013 o senado haitiano aprovou o fim da missão, mas o Conselho de Segurança ignorou e resolveu manter as tropas no país.
Muitos haitianos acusaram as tropas da missão de abusos e violência desproporcional com o assassinato de civis, repressão política de protestos e o início de uma epidemia de cólera no país, doença que havia sido erradicada, mas surgiu novamente com a contaminação do Rio Artibonite por esgotos de uma base nepalesa da missão.
A ONU se isentou da culpa na epidemia, afirmando que as condições ambientais e epidemiológicas contribuíram para a dispersão do vírus. Apenas em 2016 Ban Ki-moon, o Secretário Geral da ONU, pediu desculpas pela passividade da Organização ao tratar o caso, que resultou em 10 mil mortes.
Além disso, os resultados de uma pesquisa realizada com mais de 2 mil haitianos sobre os abusos e explorações sexuais dos soldados da ONU contra a mulheres e crianças do país foi publicada em 2019 intitulada “They put a few coins in your hands to drop a baby in you – 265 stories of Haitian children abandoned by UN fathers”. Nela, 265 pessoas concordaram em contar seus relatos de violência sofrida.
Apesar das constantes denúncias dos cidadãos do Haiti, a ONU também foi passiva na situação.
Já do ponto de vista do Destacamento de Operações de Paz (Dopaz) – nome dado a tropa de homens do exército brasileiro enviados para pacificar as favelas mais violentas do Haiti – a missão foi positiva. Ela foi a primeira a conseguir entrar em Bel Air, Cité Militaire e Cité Soleil, os lugares considerados mais perigosos em Porto Príncipe.
Além disso, a Dopaz combatia o narcotráfico de grandes organizações internacionais, fazia ações de prevenção e diagnóstico sobre tempestades e furacões e identificou líderes de gangues. Ou seja, a MINUSTAH teve aspectos positivos de trazer uma paz temporária para áreas do Haiti com problemas crônicos de segurança. Porém, a missão terminou cedo demais e o progresso nessa área foi perdido.
- MINUJUSTH (Missão das Nações Unidas de Apoio à Justiça no Haiti) entre 2017 e 2019
Em 2017, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a substituição da MINUSTAH pela MINUJUSTH. Essa nova missão tinha o objetivo de focar em aspectos jurídicos e institucionais do Haiti, fortalecendo os direitos humanos, o sistema judicial e o Estado Democrático de Direito.
Entretanto, a Polícia Nacional do Haiti (PNH) – que estava sendo treinada pela ONU – foi acusada de não respeitar os direitos humanos e utilizar a violência contra a população que protestava exigindo o impeachment do presidente Jovenel Moïse.
Os protestos cresceram quando o Tribunal Superior de Contas do Haiti apurou que Moïse supostamente havia desviado US$2 bilhões de um acordo de cooperação energética subsidiada pela Venezuela, que após o caso rompeu o acordo causando uma grande dívida para Porto Príncipe.
Com o crescimento da inflação e a falta de combustível, os protestos cresceram e diversos cidadãos foram mortos em confrontos com a PNH, o que mostrou uma falha no treinamento fornecido pelas tropas da ONU e, consequentemente, da missão.
- BINUH (Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti) a partir de 2019
Com o fim da MINUJUSTH, entrou em vigor o BINUH, com o objetivo de promover a estabilidade política, boa governança e direitos humanos. Essa missão não tem presença militar e atua de forma consultiva, apoiando e aconselhando as instituições do país. O escritório é governado pelas Nações Unidas e não tem um país líder.
Essa missão continua em vigor e se vê necessário que a ONU mude sua atuação para atender as necessidades da população.
Os pontos positivo e negativos da nova missão de segurança do Quênia no Haiti
Assim como todas as outras missões realizadas, a nova Missão de Apoio Multinacional à Segurança apresenta suas vantagens e desvantagens, que são interessantes de serem analisadas.
Vantagens
- Pela primeira vez, a missão é liderada por um país da África. O Haiti é um país com grande descendência africana e isso pode causar um maior conforto com as tropas do Quênia;
- Uma missão bem sucedida pode trazer redução da violência e dos conflitos entre gangues;
- A missão pode trazer apoio e colaboração com o sistema judiciário e policial local;
- Além disso, uma missão positiva pode trazer prestígio para o Quênia no cenário internacional;
- Primeira missão de paz liderada por um país africano, pode dar mais credibilidade às tropas junto à população.
Desvantagens
- O Quênia não fala francês, o que pode causar problemas de comunicação;
- Apesar de ter a segunda maior economia da África Oriental, o Quênia ainda não tem o melhor poder financeiro e tropas;
- A população do Quênia vem lutando contra aumento exacerbado de impostos e uma onda de protestos contra o governo liberal do presidente William Ruto andam acontecendo no país, isso causa dúvidas quanto a capacidade de Nairóbi de inferir a paz em outro território;
- Assim como nas missões anteriores, há uma preocupação com possíveis abusos de poder por parte das tropas enviadas para missão;
- O Quênia também enfrenta outros obstáculos, já que o Tribunal Superior do país considerou inconstitucional o envio de tropas ao Haiti;
- Uma parte da população queniana também não aprova o envio de tropas para território haitiano.
Mesmo com uma parte da população queniana protestando contra e concordando com a decisão do Tribunal Superior do Quênia de que o envio de tropas ao Haiti se classifica como inconstitucional, Nairóbi ainda sim continuou com a liderança da missão.
Além disso, alguns movimentos sociais como ALBA Movimentos e a Assembleia Internacional dos Povos (AIP) divulgaram no final de junho de 2024 um comunicado que afirma que a missão e a intervenção estrangeira no Haiti apenas prolongará a crise no país. Os grupos defenderam a não intervenção estrangeira no país, mas a autodeterminação do povo haitiano.
Apesar de ser um desejo nobre, ele é pouco realista. Dificilmente o país com instituições muito fracas, pobreza generalizada e falta de segurança conseguiria prosperar sem uma ajuda forte da comunidade internacional. Como os exemplos da Somália ou Afeganistão mostram, quando “estados falidos” são abandonamos pela comunidade internacional, eles rapidamente tendem a se tornar anarquias controlados por traficantes, terroristas e senhores de guerra.
Quais as reais chances de pacificação do Haiti com o Quênia e o que isso significa para a potência do Leste da África.
A missão liderada pelo Quênia no Haiti tem um período inicial de 12 meses, o que é pouco para um desafio tão grande como restabelecer a paz em um país.
Apesar dos constantes problemas que o Haiti enfrenta, como os desastres naturais, as guerras entre gangues e os problemas sociopolíticos, é preciso uma missão de longo prazo e com muito planejamento para que ela seja eficaz em manter a paz e estabilidade política do país e, ao mesmo tempo, não causar a insatisfação dos cidadãos com a violência e repressão política que ocorreram no passado.
Já considerando a liderança do Quênia, dependendo de seu desenrolar ela pode trazer um status político mundial positivo para o Quênia e para o leste africano como um todo, já que essa é a primeira vez que um país do continente lidera uma missão de paz em outro território e isso é uma quebra de paradigma.
Por outro lado, a falha e os problemas das missões anteriores podem fazer com que esse novo projeto seja visto com maus olhos por movimentos sociais e até mesmo pela população do Haiti, que anteriormente sofreu com a violência e os abusos de poder pelas tropas da ONU. Isso também pode causar tensões internas no Quênia, já que parte da população protesta contra a missão.
Ademais, uma nova missão falha – além de ruim para a população haitiana – pode potencializar uma visão negativa do Quênia e do continente africano como um todo por parte de outros países.
No passado, era comum se deparar com missões de paz em países da África. Agora, um país africano está liderando uma missão. Isso demonstra como, ao longo dos anos, o continente vem se desenvolvendo e abrindo portas, alterando como ele é visto pelo resto do mundo.