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Com a Queda de Assad na Síria, os Curdos Finalmente Terão uma Verdadeira Nação Chamada Rojava?

A queda do governo de Bashar al-Assad na Síria ao final de 2024, um evento que poucos previram há uma década, traz à tona antigas questões geopolíticas no Oriente Médio. 

Uma das questões mais intrigantes é: finalmente os curdos conseguirão consolidar uma nação independente em Rojava, a região no norte da Síria onde estabeleceram um sistema de autogestão desde 2012?

Quem São os Curdos e Por Que Eles Não Têm uma Nação?  

Os curdos são o maior povo sem Estado no mundo, com uma população estimada entre 30 e 40 milhões de pessoas. Eles estão distribuídos principalmente entre a Turquia, o Iraque, a Síria e o Irã, mas também possuem comunidades significativas em diáspora, especialmente na Europa. 

 

Apesar de compartilharem uma língua própria (o curdo, dividido em vários dialetos), tradições culturais e um forte senso de identidade histórica, os curdos nunca conseguiram formar um Estado independente, em grande parte devido a fatores históricos e geopolíticos.

No início do século XX, após o colapso do Império Otomano, os curdos chegaram perto de conquistar sua autodeterminação. O Tratado de Sèvres, assinado em 1920, previa a criação de um Estado curdo. 

No entanto, esse sonho foi frustrado apenas três anos depois, quando o Tratado de Lausanne redefiniu as fronteiras da Turquia moderna e desconsiderou os planos para um Curdistão independente. Desde então, os curdos foram marginalizados e frequentemente reprimidos pelos governos dos países onde vivem.

Apesar disso, a luta pela autonomia continua a moldar a identidade curda. No Iraque, após décadas de repressão, os curdos estabeleceram a Região Autônoma do Curdistão, tendo Erbil como sua capital. Este é o exemplo mais bem-sucedido de autogoverno curdo, garantido por uma constituição e protegido por forças armadas próprias, os peshmerga

Já na Síria, os curdos aproveitaram o vácuo de poder durante a guerra civil para estabelecer a Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria, também conhecida como Rojava, onde implementaram um modelo de governança baseado em igualdade de gênero, democracia direta e ecologismo. 

Enquanto isso, na Turquia, a luta curda é marcada pela repressão estatal contra o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), um grupo que luta por maior autonomia e que é considerado uma organização terrorista pela Turquia, Estados Unidos e União Europeia. No Irã, os curdos enfrentam discriminação e repressão semelhantes, com pouca autonomia ou direitos culturais reconhecidos.

 

Entretanto, a relevância geopolítica dos curdos aumentou consideravelmente nos últimos anos, especialmente devido à sua posição estratégica na luta contra o Estado Islâmico (ISIS). Apesar disso, sua busca por um território onde possam estabelecer o Estado do Curdistão continua a esbarrar na resistência dos países onde vivem e nas complicações diplomáticas que envolvem potências globais, como os Estados Unidos e a Rússia, que mantêm relações conflitantes com os governos regionais e os próprios curdos.

Como Funcionou o Experimento de Autogestão Curda na Síria Durante o Governo Assad?

A história de Rojava como entidade autônoma começou em 2012, quando as forças do regime de Bashar al-Assad, sobrecarregadas com o conflito em outras partes do país, recuaram da região. Isso abriu caminho para que os curdos assumissem o controle de cidades importantes como Kobani, Qamishli e Afrin.

O movimento é liderado pelo Partido da União Democrática (PYD) e suas forças armadas, as Unidades de Proteção Popular (YPG), implementou um modelo conhecido como confederalismo democrático, que se baseia em três pilares fundamentais:

 

  1. Democracia direta – onde conselhos locais e assembleias comunitárias tomam decisões coletivas;
  2. Igualdade de gênero – com um sistema de co-liderança em todas as instituições, garantindo a participação ativa de mulheres;
  3. Ecologia social – promovendo práticas sustentáveis e respeito ao meio ambiente.

O Curdistão iraquiano, com seu governo autônomo baseado em Erbil, tem uma relação ambígua com Rojava. Por um lado, compartilham laços culturais e históricos. Por outro, tensões políticas surgem devido às alianças internacionais e prioridades divergentes. 

Enquanto o Curdistão iraquiano mantém uma relação pragmática com a Turquia, Rojava frequentemente enfrenta a hostilidade turca. Ainda assim, a cooperação transfronteiriça entre as duas regiões curdas pode ser importante para a sobrevivência de Rojava.

Como a Queda de Assad está Mudando o Jogo para os Curdo-Sírios?

A queda do regime de Bashar al-Assad na Síria, que se concretizou em Dezembro de 2024, marca uma grande virada na dinâmica da região. Este evento provocou um vácuo de poder no território sírio, deixando os curdos de Rojava e outras forças políticas locais em uma posição precária, enquanto novos desafios e oportunidades surgem. 

A Turquia, em particular, tem intensificado suas operações militares no norte da Síria desde a queda de Assad, demonstrando que, embora o regime central tenha desaparecido, a luta por influência na região está longe de ser resolvida.

Desde o colapso do regime de Assad, a Turquia tem acelerado suas incursões na Síria, especialmente em áreas controladas pelos curdos em Rojava. A justificativa de Ancara para essas ações tem sido a segurança nacional, com o governo turco alegando que a autonomia curda na Síria alimenta as operações do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), que é considerado um grupo terrorista pela Turquia. 

Com a perda da presença de Assad no norte, a Turquia tem buscado estabelecer zonas de segurança, uma medida que reflete suas ambições territoriais e a necessidade de limitar a influência curda na fronteira sul.

Em várias operações recentes, a Turquia lançou ataques aéreos e terrestres contra as forças curdas em Rojava e áreas ao longo da fronteira síria-turca, incluindo a cidade de Kobane, onde os curdos tiveram um papel crucial na derrota do ISIS. 

Essas operações têm sido vistas como uma tentativa de minar qualquer possibilidade de uma administração autônoma curda na Síria, principalmente à medida que a Turquia busca impedir que o modelo político de Rojava inspire curdos em seu próprio território.

Qual é o Impacto do Atual Vácuo de Poder na Síria?

Com a retirada das forças de Assad de áreas críticas no norte da Síria, especialmente após os recentes acontecimentos, os curdos se veem agora com um território ainda mais vulnerável à intervenção turca. 

Embora a presença militar americana na região tenha sido um fator de contenção contra as forças turcas, a retirada parcial dos EUA em 2019 e as limitações da presença ocidental na área complicam ainda mais a situação dos curdos.

O vácuo de poder criado pela queda de Assad abre um novo capítulo de incertezas. De um lado, os curdos têm a oportunidade de consolidar sua autonomia política e expandir sua influência em áreas como a bacia do Eufrates. Por outro lado, eles enfrentam o risco de uma ofensiva turca mais agressiva, que poderia desestabilizar a região e reverter anos de progresso em Rojava.

Além disso, o Curdistão iraquiano tem se mostrado cauteloso em apoiar abertamente os curdos de Rojava, especialmente devido às suas próprias relações delicadas com a Turquia. A pressão que a Turquia exerce sobre o Curdistão iraquiano para evitar uma maior aliança com as forças curdas da Síria pode enfraquecer a posição de Rojava, isolando-a ainda mais.

Qual é o Real Papel dos Estados Unidos com os Curdos-Sírios: Protetores ou Espectadores?

Os EUA desempenharam um papel fundamental no fortalecimento militar dos curdos durante a luta contra o ISIS. As Forças Democráticas da Síria, lideradas pelos curdos, foram os principais aliados dos americanos na região. Washington frequentemente elogiava os curdos como os “melhores combatentes” contra o terrorismo, prometendo apoio contínuo.

Em contradição, na prática, o compromisso norte-americano com a proteção dos curdos tem sido inconsistente. A retirada parcial das tropas em momentos críticos, como durante a invasão turca em 2019, foi amplamente criticada por especialistas e vista como uma traição pelos curdos. A situação é ainda mais complicada pelo fato de a Turquia ser um membro da OTAN, tornando difícil para os EUA equilibrar suas relações com ambos os lados.

 

Ainda assim, uma das questões debatidas atualmente é se o rio Eufrates pode se tornar a nova fronteira para um Curdistão independente na Síria. Porém acredita-se que mesmo com a consolidação de Rojava, os curdos ainda enfrentariam ameaças constantes em duas frentes: a Turquia e os grupos rebeldes sírios. Além disso, a estabilidade de um possível Estado curdo dependeria fortemente de garantias internacionais e apoio militar estrangeiro.

Devido à falta de apoio dos EUA, não se sabe se Washington está realmente disposto a investir na proteção de Rojava a longo prazo. Enquanto alguns especialistas acreditam que os EUA mantêm suas tropas na região apenas para garantir a derrota completa do ISIS, outros sugerem que uma maior autonomia curda pode servir contra a influência russa e iraniana na Síria.

O  Curdistão será Finalmente Estabelecido? 

O grupo Hay’at Tahrir al-Sham (HTS) – principal grupo militar a derrubar o regime de Assad – que agora lidera a região de Idlib, tem uma visão complexa sobre a questão curda. 

O grupo tem se mostrado relutante em reconhecer ou apoiar a independência curda, em parte devido à sua postura contra a criação de qualquer forma de autonomia secular ou independente dentro da Síria. 

No entanto, em anos recentes, os líderes do HTS fizeram declarações de proteção às comunidades curdas sob seu controle, embora a implementação prática de tais promessas tenha sido limitada.

O tratamento dos curdos pelo HTS pode estar ligado ao seu desejo de evitar que qualquer movimento autônomo, como o estabelecido em Rojava, ganhe força nas áreas que controla. Isso se alinha com a posição tradicionalmente rígida da organização contra a formação de estados ou zonas autônomas baseadas em etnia ou religião que não se alinhem com sua visão de governança.

A falta de apoio internacional para a criação de novos países é outro fator determinante na luta dos curdos. As potências globais, incluindo os Estados Unidos, União Europeia, Rússia e até países do Oriente Médio, têm pouca vontade de redesenhar fronteiras na região.

Criar um Estado curdo independente não só desestabilizaria ainda mais a já fragmentada Síria, mas também provocaria reações adversas de países vizinhos como Turquia, Irã e Iraque, todos com significativas populações curdas e temores de movimentos separatistas internos.

Nesse cenário, o mais provável para os curdos seria a obtenção de uma autonomia ampliada dentro de uma Síria descentralizada. O modelo do Curdistão iraquiano serve como um exemplo viável: uma região autônoma com autogoverno limitado, mas reconhecido dentro das fronteiras do Estado-nacional.

No entanto, diferentemente do Iraque, onde os curdos têm uma posição consolidada, o futuro de Rojava ainda é muito incerto, especialmente diante das intervenções militares da Turquia.

Dessa forma, o destino de Rojava e a possibilidade de um Estado curdo independente permanecem incertos. 

A queda de Assad pode ter aberto uma janela de oportunidade, mas os desafios geopolíticos são imensos. Os curdos têm provado repetidamente sua resiliência, mas dependerão de alianças internacionais e de uma abordagem mais coesa para enfrentar as ameaças externas.

No final, a pergunta é: a comunidade internacional, especialmente os EUA, estará disposta a cumprir suas promessas aos curdos ou continuará a usar essa população como uma moeda de troca em jogos políticos maiores?

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